Texto: Compartilhar a Experiência

'Compartilhar a experiência' é um texto de Túlio Rosa e Luan Cassal, desenvolvido a partir do projeto Eu Vírgula Você e Eu.



Compartilhar a experiência:
Eu Vírgula Você e Eu
Túlio Rosa¹
Luan Cassal²

 
Em 1949, Jean Genet torna público, em seu livro "O Diário de um Ladrão", um fragmento que denuncia a violência e opressão que sofreu em uma delegacia de polícia por portar um objeto simples, um tubo de vaselina, que através de sua presença revela sua homossexualidade e seu prazer marginzalizado: o sexo anal. Em 2006, Gisberta, travesti brasileira, é mantida em cárcere por três dias, torturada e assassinada por um grupo de meninos entre 13 e 16 anos, na cidade do Porto, Portugal. Ao ser examinada, já sem vida, descobrem por uma série de graves lesões no ânus que ela foi violentada com um pedaço de pau.

Genet e Gisberta não estão unidos pela violência, mas pelo cú, e pelos prazeres que seus corpos ostentam. Sua dor não está no cú, mas nos prazeres que lhes são sufocados. Por quê o prazer do outro incomoda? Por quê o cú, que aliás, une a todos nós, independente de sexo e gênero, é o alvo de tamanha rejeição?

O texto que segue é uma reflexão a partir do processo de pesquisa do projeto Eu Vírgula Você e Eu, e tem por objetivo compartilhar as questões, pensamentos e estratégias que nos atravessaram ao longo do percurso, além de compor as ações apoiadas pelo Ministério da Cultura do Brasil, através do edital de Intercâmbio e Difusão Cultural 2012, para o aprofundamento da pesquisa em residência na cidade de Lisboa, Portugal.

O projeto Eu Vírgula Você e Eu nasceu de incômodos e desejos. O incômodo de saber-se incomodar, e o desejo de experimentar ir ao encontro, do incômodo, dos prazeres, do outro. Partimos inicialmente de duas principais perspectivas: a primeira delas foi investigar mais profundamente a relação entre performer e público na construção de trabalhos situados no campo das artes cênicas - pensando a performance como parte integrante desse campo quando tem o corpo como ponto de partida para a criação.  A segunda, pesquisar em que medida prazer, sexualidade e violência estavam imbricados nas relações sociais, e de que forma essa triangulação poderia ser explorada através da experiência compartilhada. O principal resultado dessa pesquisa foi a criação de uma performance, que serve também de base para o desenvolvimento deste texto.

A concepção do trabalho tem por base o diálogo entre performer e público, e se associa à produção estética que entende o processo como produto e a obra como a própria ação de criar. Cecíclia de Almeida Salles (2009), fala em uma “Estética do Movimento Criador”, que não se configura apenas pelo objeto criado, mas pelo próprio ato criativo. Ela defende que a criação é um processo de contínua metamorfose e que os trabalhos estão sempre em estado de possível mutação. Essa compreensão é também uma das bases da noção de work in progress, que segundo Renato Cohen (2006), pode ser definido  como uma linguagem que incorpora o acaso e tem por características a processualidade, a não-linearidade e a hibridização de conteúdos. De outra forma, Margarida Rauen (2009), a partir de um trabalho de Rubens Rewald, apresenta o work in progress como um sistema de bifurcações. Nesse sentido, uma bifurcação é a resultante de um momento de instabilidade no processo que permite que outras possibilidades se apresentem e Rauen acredita essa é uma metáfora eficiente na definição de trabalhos baseados na interação entre artista e público, onde o inesperado também é estimulado pelo artista, que se coloca disponível para a interferência dos espectadores, ou cria situações para que eles, e o acaso, se manifestem.

Pensar a produção artística a partir do encontro com o outro também nos aproxima do conceito de arte relacional, desenvolvido por Nicolas Bourriaud. Para o pesquisador, o surgimento dessa modalidade de produção estaria ligado às tranformações no campo social, derivadas principalmente da urbanização generalizada que ocorreu na segunda metade do século XX, associada à uma maior possibilidade de mobilidade dos indivíduos, que permitiu um considerável aumento nos intercâmbios sociais. As práticas artísticas  abordadas por ele, criadas nesse contexto, têm como horizonte teórico "a esfera das interações humanas", e se apresentam como "uma forma de arte cujo substrado é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o 'encontro' (...), a elaboração coletiva de sentido." (BOURRIAUD, 2009: 21)

A performance Eu Vírgula Você e Eu parte da proposta de produzir esses espaços de encontro, onde a  possibilidade de compartilhar e experimentar em coletivo constituem o próprio trabalho. A estrutura se formula como algo semelhante à um sistema interativo no qual uma série de elementos/ações compõe um território (de imagens, sons, fragmentos, memórias, associações) que faz emergir as questões orientadoras do trabalho. Nesse sistema, o performer atua como um provocador e um operador de instabilidades, num jogo entre estimular ações/reações dos participantes, e criar linhas de tensão entre essas respostas e o universo da performance. O desafio, no entanto, é configurar um ambiente propício a esses encontros, propositivo, e ao mesmo tempo disponível à interferências;  um campo que permita ao público transitar para o lugar de um agente compositor - um espectador redirecionado que tem por função gerar respostas performáticas (RAUEN, 2009:161).
A passagem do público para um estado mais ativo em relação à performance envolve um certo grau de exposição, que também demanda confiança - nesse caso, um vinculo que não pode ser estabelecido apenas entre duas pessoas, e sim entre o coletivo que se forma em torno do trabalho. Ainda que isso inclua estados e características individuais, anteriores ao momento do encontro, descobrimos que esse processo pode ser impulsionado pela própria exposição do perfomer, aliada à um estado de disponibilidade, escuta e cuidado. Por outro lado, esse mesmo estado é a principal ferramenta utilizada para a construção de um ambiente favorável às trocas, que sugere e permite o estabelecimento de um coletivo heterogêneo e efemêro, que a partir da diferença, funda um lugar comum. O comum que buscamos se afasta das hierarquias, não em uma direção oposta, mas por uma tangente, onde dar e receber não configuram relações de poder, mas apenas pontos de partida, espaços de ação. Experimentar a possibilidade de uma arte relacional, em nossa pesquisa, se tornou a busca por um estado potente, de acolhimento e provocação, que contemple direções opostas e multiplicidades. Um estado composto de possibilidades e diferenças, que surge de um primeiro lugar, que até este momento, entendemos como 'doçura'. 

A 'doçura', como vamos utilizar aqui, não nasce de um conceito já delimitado, ou do significado estrito da palavra, mas de uma imagem que nos acompanha ao longo do processo e que nos parece potente para pensar um estado catalisador. A doçura não é uma propriedade isolada nos corpos, é um sabor que nasce no contato com o paladar, no encontro da boca com bolo; e se associa a algo de subjetivo, para alguns pode ser mais, para outros, menos. Num contexto de mecanização da cultura, de profissionais especializados,  de falas afirmativas e encontros virtuais, onde“as relações humanas não são mais ‘diretamente vividas’ mas se afastam em sua representação ‘espetacular’" (BOURRIAUD, 2009:12), a doçura pode ser capaz de produzir brechas. Nas relações em cena, ela pode suavizar a figura do proponente, e se traduzir em convite: gerar espaços de escuta. Por outro lado, ela também remete à ternura e permite que se estabeleçam relações sutis de afeto, que contribuem para potencializar o encontro e para estabelecer uma sensação de coletivo, de entrega e confiança entre os participantes. A 'doçura' de que falamos  é  também provocativa, na medida em que revela fragilidades e se opõe a uma lógica de dominação: ao invés de impor sofrimentos ou caracterizar vítimas, ela sugere uma exposição cuidadosa que convida à partilha pela suavidade do encontro.

A composição da performance se orienta  por ações autônomas, inicialmente conectadas à um dos elementos presentes no trabalho que, em diálogo com o público funcionam como estímulos, produzem desdobramentos e novas ações. Desligadas de uma noção de linearidade, elas buscam produzir atravessamentos e afecções que se manifestam livremente no espaço construindo camadas: ações, prazeres, discursos e experiências sobrepostas. De certo modo, o trabalho se constui como um conjunto de camadas e um campo de entrecruzamentos, apoiado nas "associações, nas justaposições, na rede, numa não causalidade que altera o paradigma aristotélico da lógica de ações" (COHEN, 2006: XXV). A produção desse campo se associa também à noção de paidia, conceito que tem forte presença nos estudos de Rauen (2009, 2011), e compreende os experimentos e  sistemas onde predominam a livre improvisação, a instabilidade, o não-controle, o risco,  e o caos. 

A performance parte de três elementos básicos: o primeiro deles é o lubrificante íntimo KY, utilizado como ferramenta para interação do performer com o público, através do toque e do estímulo sensorial, num jogo entre acariciar, seduzir e erotizar os participantes. O lubrificante também serve como textura para construção de uma dança, reduzindo o atrito com o chão, desestabilizando o corpo em cena, e provocando novas conexões e outras formas de mover e se projetar no espaço. O segundo elemento consiste em fragmentos de texto, narrativas pessoais, palavras, que sugerem constrangimentos e situações de violência originadas, em geral, pela dificuldade de aceitação, rejeição, raiva ou pena, geradas por comportamentos divergentes das construções sociais em torno dos gêneros nas sociedades ocidentais contemporâneas. Tais narrativas, contadas ao pé do ouvido ou lançadas no espaço, tensionam as relações em curso e oscilam entre o convite e a provocação. Como terceiro elemento, são utilizadas perguntas, questões que articulam e desarticulam as imagens  e modos de reconhecimento presentes nesse território, e apontam a incerteza das experimentações dos prazeres, dialogando com a instabilidade do KY no chão ao mesmo tempo em que remetem à ambiguidade da massagem com gel lubrificante, delicada e erótica.

Nesse universo, eu, você e o outro se encontram pelas conversas, histórias, gestos, perguntas e toques. O despertar do prazer a partir da massagem com o lubrificante, ainda que de outra forma, remete ao ato sexual, e a própria função do KY: facilitar a interação e o contato entre duas partes, sem no entanto, definir os papéis de cada um nessa relação. O KY, atualmente, tem grande circulação no universo gay, embora não seja vendido com esse direcionamento, na medida em que suas instruções de uso recomendam-no para lubrificação íntíma, com e sem preservativos, e exames ginecológicos. O lubrificante também mantém vinculada sua imagem, através de campanhas publicitárias, ao público feminino, demosntrando com clareza a escolha de fortalecer um discurso heteronormativo - “o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar a todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo [heterossexual]” (MISKOLCI, 2007: 5-6). Em cena, ele invoca as noções dicotômicas de ativo-passivo, dominador-dominado, dar-receber; através do embate com tais narrativas, questiona os papéis do masculino e do feminino em nossa sociedade e, mais especifiamente, nas relações sexuais, que também são relações de poder. 

Conforme aponta a pesquisadora queer Beatriz Preciado (2008, 2010), ao estudar os sistemas de produção de corpos e prazeres no contemporâneo, o prazer é diretamente associado ao falo, propriedade do masculino, enquanto o feminino é construído em um papel objetal, de consumo, em que o prazer sexual é secundário ou inexistente, substituído por uma maternidade consumida como natural. Práticas apre(e)ndidas nos veículos de mídia, especialmente nos conteúdos pornográficos, que centram o olhar no prazer masculino. Nessa dicotomia homem-mulher, o cú pode ser um símbolo da submissão (posto que será 'tomado' por alguém), mas também traz um curto-circuito nas conexões pré-definidas. O cú ignora o mito de sexo para reprodução; a prática sexual passa por prazer e experimentação, podendo inclusive romper com as divisões de gênero e erotizar outras partes do corpo e objetos. O cú, de certa forma, é democrático: compartilhado por todos, passível de uma ação revolucionária. O prazer anal é uma ameaça a um modo instituído de se compreender os corpos, os prazeres e as relações.

A experiência em Portugal contribuiu para uma compreensão mais forte da influência das políticas públicas nesse jogo. Diferente do Brasil, a distribuição de preservativos é acompanhada de lubrificantes já que, quando utilizados, reduzem o risco de rompimento da camisinha. Para além da proteção, esses materiais eram acompanhados das frases: "use. desfrute a vida" e "viva as experiências e os prazeres em pleno e com segurança", que constituem outra relação entre saúde pública e sexualidade, muito além da prevenção de DSTs e especialmente HIV/AIDS pelas imagens de terror. Naquele contexto as questões de gênero também ganharam mais potência e evidência, e os constragimentos e a violência se mostraram mais vinculados à transição entre gêneros (travestis, transexuais e transgêneros) do que à homossexuais que mantem sua imagem pública vinculada ao sexo biológico. O estranhamento aos prazeres, como pudemos perceber através da pesquisa para o projeto em entrevistas e depoimentos, aparece mais fortemente ligado às identidades sociais, que as experiências privadas. 

O gênero não é uma categoria dada ou estanque. Judith Butler (2010) entende o gênero como uma estratégia de reafirmação das normas que delimitam os corpos, marcando alguns como dado a priori do humano e outros enquanto monstruosos, impossíveis e inaceitáveis. Os corpos são tomados como naturais ou, como afirma Guacira Lopes Louro (2004:81): “a ordem ‘funciona’ como se os corpos carregassem uma essência desde o nascimento; como se corpos sexuados se constituíssem numa espécie de superfície pré-existente, anterior à cultura”. Entretanto, Michel Foucault (1988) nos lembra que essa ordem precisa de contínuo investimento com produção de tecnologias, discursos e relações de poder. Os filmes pornográficos, a comunicação em massa, os dildos e o gel lubrificante, as pílulas anticoncepcionais, a reprodução assistida: diversas tecnologias que, para Haraway (2009), se conectam na fabricação das experiências humanas. É necessário entender as construções de gênero como ficções narrativas, que funcionam como performances segundo programações estabelecidas pelas normas. Tratar de performances de gênero é colocar a construção cotidiana do corpo como uma ação política que, ao mesmo tempo, atende e resiste às programações definidas para as relações de gênero (PRECIADO, 2008). Para manutenção deste complexo dispositivo de gênero, os corpos transgressores sofrem intervenções com finalidade de alimentar o sistema, afirmar uma ilegitimidade das práticas e produzir modos controlados de existência. A eliminação das manifestações de gênero não-hegemônicas é um dos processos agrupados no nome 'homofobia', que se refere a: 

“situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas (homossexuais ou não) cujas performances e ou expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos etc.) não se enquadram nos modelos hegemônicos" (JUNQUEIRA, 2007:8).

Travestis são alvos prioritários de violência, agressão, discriminação e exclusão do espaço público, porque os seus corpos são performados como fronteira, denunciando o caráter arbitrário das normatizações de gênero. Estes corpos desmontam as hierarquias estabelecidas; porém, como são indesejados, a investigação de seus assassinatos não é de interesse do Estado (CARRARA; VIANA, 2006). A imagem da travesti é muito potente para pensar nossa relação com os prazeres do outro: o prazer de existir, de montar seu corpo, sua performance de gênero, de experimentar práticas sexuais. A travesti é uma máquina de guerra, mas não será ligada à imagem da guerreira, considerando a história de um nenhum narrado por Luis Antônio Baptista (2011):

“No meado dos anos setenta tinha dezoitos anos e trabalhava na Rua do Riachuelo. Certa madrugada recusei dar dinheiro a um policial dono do pedaço e fui parar na delegacia. O cara enfiou um cabo de vassoura no meu rabo e depois me deu um pedaço de papel higiênico para me limpar. O cana sorria dizendo com a voz doce que eu era uma guerreira. Detesto esta palavra até hoje. Na mão do torturador o anel com São Jorge assistia calado. o cabo de vassoura entrou no rabo dos travestis vivos e mortos. Não gemi de dor sozinha. A dor que senti foi, e ainda é de muita gente.”

As experiências trans compuseram a performance através falas e fragmentos de textos,  que dessassociados de um corpo correspondente, remetem a imagens e experiências que podem atravessar a existência de todos, pois, para além da violência, a força de questionar os gêneros traz possibilidades de repensar os prazeres. Utilizar a violência como questão principal quando se discute as questões (e transgressões das normas) de gênero é construir modos de existência na posição de vítimas. Faz-se necessário produzir outros sentidos, pensando o que as diferenças trazem como potência de diferenciação (CASSAL, 2012). Nesse sentido, nos pareceu importante pensar a proposição das reflexões numa chave menos opressor-oprimido e discutir a violência sem ênfase no sangue ou nas lagrimas, mas como a violação de um direito, um constrangimento desnecessário. 
A exposição do performer em histórias e gestos, associada à intimidade da massagem com KY, provocou os participantes a falarem de alguns prazeres não convencionais. O espaço amplo das salas de apresentação ganhou uma nova camada de conforto, confiança e troca. Observamos que essa configuração do coletivo em torno da performance opera bifurcações, da mesma forma como a psicóloga Regina Benevides de Barros (1998) discute o funcionamento de grupos. A performance não trabalha com papéis pré-definidos para os participantes. Isso coloca a cada um o dilema de escolher suas práticas. As respostas podem fugir do óbvio, do fixo, do esperado. Falar do seu desejo, dançar em cima do lubrificante ou falar no microfone são provocações feitas apostando em novos arranjos: “A conexão se faz em qualquer ponto e é sempre heterogênea” (BARROS, 1998: 28). 
O  grupo é um 'entre', uma fissura nos modos tão cristalizados de existir, divididos entre desejos individuais e pressões sociais. Na performance, as práticas grupais reinventam o 'eu' que se encontra com vários outros, pois é na diferença que se produzem processos de subjetivação. Retirar as práticas sexuais e manifestações de gênero da tensão permitido-proibido é construir possibilidades outras, inventar formas de estar no mundo. O prazer é um tema comum, que atravessa os corpos e produz conexões variadas: 

“O grupo é o entre, aquilo que está no meio, mas não aquilo que se debate entre totalidades capturantes/capturadas que almejam manter-se, acima de tudo, como identidades imutáveis. […] Tomar algo pelo meio é abandonar a procura das origens, é não se nortear pelos finalismos já-dados, é privilegiar as conjunções, as inclusões. O grupo é aquilo que se insinua entre as dicotomias, não para resolvê-las ou superá-las, mas para delas escapar, construindo pequenas passagens para pré-individualidades informes” (BARROS, 1998: 30). 

O gel lubrificante, por si só, não fala da intervenção produzida pelo grupo. Sua potência de diferenciação, que emerge no seu significado e na sua plasticidade, poderia se perder em uma atividade absolutamente direcionada, com conclusões pré-definidas e tendo participantes como espectadores de um processo que não se abre para o inesperado. Nosso trabalho, pelo contrário, entende que a performance deve assumir seu lugar de entre, de encontro, de incompletude, pois aí reside sua potência.

Na proposta que desenvolvemos, estar junto e produzir esse encontro envolve uma atitude específica por parte do performer. Abordar homofobia e violências de gênero comumente envolve imagens de destruição e morte, materializando um peso nos corpos e movimentos. Uma atitude violenta que por vezes afasta a experiência do outro, na medida em que produz medo, ojeriza e vitimização. Assim, a reação à violência é igualmente violenta. Sair deste ciclo demanda um caminho transversal, que entendemos ser possível por uma atitude que vinculamos ao nosso entendimento de 'doçura'. Os participantes são convidados a agir livremente no espaço da performance, sem regras ou juízos pré-determinados de valores. O que interessa é produzir conexões e, quem sabe, seguir fluxos para outras experiências, escapando dos modos já instituídos de existência. A doçura envolve uma atenção à espreita (KASTRUP, 2009), percebendo vários processos e movimentos sem ficar concentrado em um único ponto, produzindo reações pensadas naquele instante mesmo. Além disso, a liberdade de ação do próprio performer, sem regras pré-definidas de qual é o seu lugar e o seu papel, se torna um convite aos participantes para agir da mesma maneira. Identidades aparentemente fixas como idade, etnia, gênero, classe social, ganham novos contornos. Com uma atitude pueril e inocente, em contradição ao peso da temática, o performer joga com a delicadeza de movimentos, a sedução do KY, o convite à construção de novos lugares.

O processo de pesquisa do projeto Eu Vírgula Você e Eu, nos trouxe a potência de transformação contida no encontro. Para além de fórmulas ou certezas, de expectativas de modificação do outro, o que fica em nós é a possibilidade de experimentar a invenção de um lugar comum, pautado na fragilidade exposta, no cuidado, na entrega e numa escuta sensível. O estar-juntos, em constante diálogo, fortalece a possibilidade de reinvenção dos (nossos) corpos, de afirmação das singularidades, geradores de um comum realmente múltiplo e diverso, difícil de conquistar, mas prazeroso de se construir.


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1. Túlio Rosa é artista, formado em Licenciatura em Dança pela Faculdade Angel Vianna. Sua experiência articula as linguagens do teatro e da dança, e desde 2009, desenvolve projetos solo, e em colaboração, no campo da artes cênicas e performance. Contato: rosa.tulio@hotmail.com

2. Luan Cassal é Mestre em Psicologia pela UFRJ, militante e pesquisador de questões sobre homofobia, cidade e educação. Contato: luancassal@gmail.com

3. A performance Eu Vírgula Você e Eu vem sendo desenvolvida desde novembro de 2010, e já foi apresentada,  nas cidades do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Lisboa.

4. A residência Eu Vírgula Você e Eu foi apoiada pelo Ministério da Cultura, Secretaria de Incentivo e Fomento à Cultura através do edital Intercâmbio e Difusão Cultural 2012, e realizada em parceria com o Seu Vicente Residências Artísticas, que tem o apoio da Camara Municipal de Lisboa, e o c.e.m [centro em movimento].





Bibliografia:


BARROS, Regina Benevide. A noção de entre em Deleuze/Guattari: primeiras aproximações à clínica dos grupos. In: Cadernos Transdisciplinares. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.

BAPTISTA, Luis Antonio. Oração de um nenhum a nossa senhora dos desvalidos. In: Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Ano 25, nº 78, dez. 2011.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins: 2009.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, G. L. O Corpo Educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 151-172.

CARRARA, Sérgio.; VIANNA, Adriana. “Tá lá o corpo estendido no chão...”: a Violência Letal contra Travestis no Município do Rio de Janeiro. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.16, n.2, 2006, p. 233-249.

CASSAL, Luan.. Tiros, lâmpadas, mapas e medo: cartografias dahomofobia como dispositivo de biopoder. Dissertação [Mestrado em Psicologia]. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012.

COHEN, Renato. Work in Progress na cena contemporânea: criação, encenação, recepção. São Paulo: Perspectiva, 2006

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.33-118.

JUNQUEIRA, Rogério. Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio a disputas. Bagoas: Estudos gays, gêneros e sexualidades, v. 1, 2007, p. 1-22.

KASTRUP, Virgínia. 'O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo'. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (org) Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade, Sulina, Porto Alegre, 2009

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MISKOLCI, Richard, A Teoria Queer e a Questão das Diferenças: por uma analítica da normalização, disponível em: <http://www.alb.com.br/cdteste/prog_pdf/prog03_01.pdf >, consultado em: 01 set. 2011. 2007.

PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Espasa: Madrid, 2008.

_________. Pornotopía: Arquitectura y sexualidad em “Playboy” durante la guerra fria. Barcelona: Anagrama, 2010.

RAUEN, Margarida Gandara (Org.). A interatividade, o controle da cena e o público como agente compositor. Salvador: EDUFBA, 2009.

__________. Participação: o Ex-público e o Ativismo. in: Anais VI Reunião Científica da Abrace. Porto Alegre: UFRGS, 2011

SALLES, Cecília de Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2009

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